A vida de um trapezista aposentado e atual armador de lonas


O circense Marcos Henrique, ex-trapezista e atual armador de lonas.
      Marcos Henrique Alves Faria, nasceu em Guarulhos, no Estado de São Paulo, e é a quarta geração circense de sua família, nasceu em dezesseis de agosto de mil novecentos e cinquenta e quatro, hoje com cinquenta e nove anos, é morador de Santa Bárbara do Oeste, na região de Campinas, São Paulo.
Órfão desde muito cedo, Marcos conta um pouquinho de sua família – O único homem da família sou eu, ai é o seguinte todas as minhas irmãs são mais velhas que eu, e elas tiveram uma vida independente depois que meus pais faleceram (...) e eu fiquei ali, fiquei ali né (...) eu fiquei órfão com doze anos, mas eu já tinha absorvido essa vida circense do meu pai e da minha mãe no circo deles, no nosso circo.
Seu pai era proprietário de um circo americano, na época, circo americano era o circo que viajava, anos depois, ele desfez a sociedade com seus três irmãos, que era um circo grande, e virou proprietário de um circo pequeno, chamado de circo teatro e Marcos começou a atuar como trapezista nesse circo - Só que o circo era um circo teatro, primórdio, porque eles tinham um show no picadeiro, ai levavam isso pro palco, e tinha um show que eles chamavam de show radiofônico, que eram cantores, cantoras, danças, e no final do espetáculo, eles traziam sempre um drama ou uma comédia pra terminar, então na verdade era um espetáculo de três partes.
–Lâmpada par, isso que tem ai agora, nos anos sessenta meu pai já tinha feito da imaginação dele essas luzes coloridas de piscar estroboscópicas, e já tinha feito e nós tínhamos isso no circo, tinha os holofotes, tudo feito de cone, com lâmpada pintada e um disco ali fazendo o seqüencial, isso lá traz em sessenta, e a modernidade chegou agora, mas ele já era visionário, isso que deixa a gente, não vou dizer acima, mas com um “timezinho” a mais do que o pessoal que vive na cidade, porque a gente tem uma vivência maior, porque você acaba absorvendo um pouquinho de cada costume, de cada Estado, isso só vai aumentando o seu portfólio– entre risos o artista recorda.
O circense conta ainda que foi a partir daí que renomeados artistas como Luiz Gonzaga, Manzarote, Chitãozinho e Xororó, Toni e Tinoco, Ângela Maria, Léo Canto Robertino, e Silvo Salvos ganharam o reconhecimento público, todos eles iam no circo fazer show –Silvio Santos vinha no circo fazer “O show da caravana do peru que fala”, ele e Manuel da Nóbrega, e isso eu me lembro, que ele chegava no circo,  entrava na barraca e pegava a tampa da panela no fogão para se alimentar. Ele vinha com uma Kombi, Manuel da Nóbrega e umas meninas vendendo “baú da felicidade” e fazia o show. Outro orgulho que eu tenho, é que eu chachei com Luiz Gonzaga, chachado é uma dança do nordeste, e eu e Luiz Gonzaga, um do lado do outro dançando.  Então, essa é minha veia circense.
Marcos perdera seus pais ainda muito jovem, e foi encaminhado para um colégio interno, estudou lá por um tempo e quando saiu já era um rapaz –Entrei menino , já sai rapaz, e já sai pro circo de tiro, circo de tiro é o que a gente chama esses circos que ficam pouco tempo num lugar, que é itinerante, ai como eu já tinha toda formação, já tinha toda tarimba de circo em si, de trapézio, ai fui trabalhar como trapezista, porque já era o que eu sabia fazer, então é difícil você deixar de fazer uma coisa que você está habituado a fazer.
O artista conta que foi nessa época que surgiu a oportunidade de fazer báscula, que é uma modalidade de acrobacia, e que fez báscula durante vinte anos, quando viajou bastante –Na verdade é um trampolim (...) é um trampolim, sobe dois no trampolim e é uma gangorra, então fica um nessa parte debaixo da gangorra e pula dois aqui, então da a hora, e ele sai fazendo mortal, pirueta, double volta, tripe volta, eu no caso era o porto, subia lá, ele saia de lá, fazia um salto mortal e vinha no meu ombro, ai eu pegava ele no ombro, ai saia outro, fazia outro salto mortal, e ia pro ombro desse que já estava no meu ombro, e no final tinha mais um que saia e ia pro ombro do outro.

O ex-trapezista em um registro feito de sua acrobacia.

Com uma rotina de treinamentos intensa, Marcos ensaiou dois anos para então fazer o número de báscula –É puxado, tem que ter uma boa alimentação, porque o meu número em si era triple pesado , era pesado, eu punha duzentos e dez quilos no ombro, duzentos e dez quilos(...) tem toda uma ciência né, se você pega um objeto e atira ele pra cima, se ele pesa dez quilos, ele não vai chegar no chão com dez quilos,ele vai chegar com mais, e meu volante tinha sessenta e dois quilos,ele ia mais alto do que essa lâmpada do chão, você tinha que ir lá buscar ele, então a gente tinha uma alimentação boa, frutas, legumes, beber pouco (...) E a gente levantava cinco horas da manhã, ia até as oito da manhã treinando, ai dava um intervalo, a gente descansava, à tarde treinava mais um pouco, das cinco até às seis, que era pra gente saber o que ia fazer na hora do espetáculo, pra não confundirmos o tempo (...) é igual a menina lá dos malabares, se ela começar a jogar quatro claves, quando ela parar o ensaio dela, ela tem que jogar três, pra que ela não confunda o tempo, e era a mesma coisa a gente.
Segundo Marcos, ele é recordista na báscula –Porque eram quatro, era eu e mais três, é por isso que eu tenho uma boa estrutura, é por isso que eu tenho uma idade e ainda estou na ativa, porque uma vez atleta, se você parar engorda, apesar dos meus sessenta anos,que faço esse ano agora.
Atualmente Marcos Henrique é armador de lonas, conhecido popularmente como capataz ou prático, mas para a legislação é chamado de técnico –Eu armo e desarmo isso tudo, eu e uma equipe, normalmente de quinze homens, então, na verdade, essa aposentadoria é figurativa, porque você não aposenta, você está aqui o dia a dia no circo. Cada cone daquele ali é uma estaca, e essa estaca é fixada manualmente com a ajuda de um martelinho, e é na mão. São dois dias para armar e um dia e meio para desmontar (...) são trezentos e sessenta tábuas, seiscentas cruzetas, tipo um cavaletezinho, e tudo isso é manual, não tem como mecanizar.
Com orgulho e bom humor, Marcos conta do seu compromisso atual no circo –Você vê, agora eu estou sozinho aqui,o outro responsável, que é na verdade o capataz, não está, então a responsabilidade daqui é minha, você tem que estar aqui, é vento, é limpeza, é uma costura da lona que abre, é uma estaca que o vento força e afrouxa, você tem que ir lá refazer, então você tem essa rotina diária aqui no circo.
O ex-trapezista diz que viveu paralelamente a vida circense e a vida da cidade, conta que já trabalhou como garçom e barman –Eu sempre fui só, eu sempre fui sozinho, então não tinha problema, mesmo eu não tendo curso superior, eu me desenrolava bem, tanto é que eu até trinta anos estava trabalhando na indústria, trabalhei em casas finas de São Paulo (...) eu trabalhei doze anos em um restaurante lá em São Paulo, então em uma casa que você servia a nata da sociedade paulistana e carioca, eu tenho comigo uma lembrança, eu servi lá nesse restaurante o Príncipe Charles, ele e a comitiva de sessenta pessoas, servi também um príncipe da Espanha(...), são coisas que a gente carrega né, então eu entrei como ajudante, rapidinho fui pra barman, de barman fui a chefe de fila e ia pra métri, mas ai o circo passou e eu “opa”, larguei tudo e voltei pro circo.
De tudo o que viveu, o armador de lonas diz que só não conseguiu realizar um desejo na vida, que era a quinta altura na báscula que ele queria fazer –Eu me casei, e minha mulher não era do circo, não é do circo, ela é da cidade, então ela tem muita resistência pra poder acompanhar o nosso dia a dia no circo, você quando andou ali pra trás, observou, é um trenzinho pequeno, e quando não tem água no térreo, ai tem que pegar dois baldes, ir lá no vizinho pegar água. E não é sempre que tem essas praticidades que tem aqui, não é sempre que a gente arma em um terreno assim, às vezes é barro, é lama, e chove, e enche d’água, e ela não se adaptava muito bem a isso, e como ela era muito nova, maluquice né, eu falei “então perai, eu vou deixar o circo e vamos embora”, ai sai, sai criei meus filhos, dei educação a eles, estão lá em casa, e meu vô dizia “cara de circo tem que morrer em circo”, eu não consigo ficar em casa, eu tenho que sair, tenho que viajar, tenho que ir atrás.
Marcos, entre risos, diz que se não tivesse tido essa profissão, essa vida de artista circense, ele gostaria de ser circense. E relata um grande acontecimento que teve na sua carreira – A nossa ida pro circo Tihany, porque na minha época não existia Circo de Soleil, então o ápice do circo aqui no Brasil, era Tihany (...) todo mundo queria trabalhar lá, e nós tivemos uma briga no circo onde nós trabalhávamos e achamos melhor ir embora, porque na época tinham animais no circo, e tinha um cara que tinha um macaco, e esse macaco era muito bravo, o cara soltava o macaco, o macaco podia pegar, e se o macaco pega né? Ele decepa mesmo. Saímos e fomos pra frente do Circo Garcia, que hoje já acabou também, nós estávamos parados lá, e fomos arrumar contrato na Argentina, no Circo Roda, fomos pra Argentina, conseguimos contrato, o cara deu cinco mil dólares pra nós, de abono, que era pra gente fazer a viagem, chegamos em São Paulo, estamos arrumando nosso equipamento, os traillers pra viajar, isso era uma sexta-feira à noite, ai estamos lá assim, e de repente escutamos: “O com permisso, o com permisso”, “com permisso? Com permisso?”falei, “ deve ser os caras da Argentina”, era o Circo Tihany, o dono do circo, “vocês vão trabalhar com a gente”, “oh seu Tihany, nossa, como a gente gostaria imensamente de trabalhar com o senhor, o ápice do circo, mas a gente já tem um contrato com o Roda, e já deu bônus pra gente poder viajar”, ele falou “não, já conversei com o dono do Roda, toma mais cinco mil pra vocês e eu já dei cinco mil pra ele lá, vocês vão viajar com a gente”, então pra mim aquilo foi marcante, foi marcante porque até então não tinha um báscula, e o nosso número era um número fora de série. Existia báscula, mas não como a nossa, do porte da nossa, do pilate, sabe? Porque a gente tinha um grau de dificuldade muito grande, haja essa quarta altura, que é ombro a ombro, tripe salto mortal, double salto mortal, pirueta, duas básculas e charivari, que é uma variação. Muito valorizado,muito valorizado, então nós chegamos assim, sabe, que nem dizem os outros “por cima da carne frita” né?! “Poxa, os caras são bons” ai nós éramos bons, nós éramos bons no que fazíamos então esse foi, sabe, o que mais marcou, né?! Tihany é um circo luxuoso, só de bailarinas tinham vinte e cinco, tinham doze tigres, tinham dez leões, tinham quatro elefantes, tinham doze ursos(...). O que mais marcou foi a nossa entrada no Circo Tihany, a trupi, a nossa trupe, nós éramos em dez no picadeiro, era a trupe de acrobatas, eramos jovens né, e a gente fazia sucesso, era um número bem vestido, bem coreografado, uma boa música e toda rapaziada jovem, umas moças jovens também, então agradava, a chegar ao ponto de você terminar, quando você ia na frente do picadeiro pra cumprimentar, o pessoal levantava pra aplaudir em pé, então esse é o ápice, eu acho, do artista. E isso eu encontrei lá no Tihany.
Marcos conta que os figurinos dos shows eram desenhados e feitos por um único costureiro que fazia parte da equipe do circo –A gente só tinha um consenso de fazer uma roupa que se adaptasse bem ao tipo de movimento que a gente fazia, tinha que ser colada, não podia ser a calça frouxa porque atrapalha.
 O circense diz não ter problemas com tantas viagens que faz em prol do circo, diz ser sempre uma expectativa nova –Porque aqui você já sabe o que é, agora, a frente a gente não sabe, é o desconhecido, então é isso que impulsiona a gente, é saber, é o desafio!
E mais uma vez fala orgulhoso do seu trabalho –É o record, “não, vamos lá, vamos fazer mais rápido, vamos se empenhar um pouco mais, vamos deixar a coisa mais interessante, mais bonita”, pra quem? Para o público, né?! cada público é um público, e o artista e si, o reconhecimento dele, é o público, você entra aqui, olha assim “ah está muito bonito, está muito limpinho, está bem organizado”, isso me dá prazer, porque fui eu quem fez. Vale muito a pena, vale mais ainda você ficar aqui e escutar os comentários na saída “Poxa que legal, aquela menininha fez aquele negócio”, “ ai que bom, aquele cara é bom (...)”, isso é do que a gente sobrevive, a gente também gosta de ouvir isso.
Marcos diz que o aplauso é o alimento do artista e que sua inspiração na vida é a sua família –É o esteio, é o incentivo e o nosso apoio– E conta que o entristece ver uma lona de circo mal cuidada, e intrigas dentro do ambiente em que trabalha –Porque nós não somos nada aqui, nascemos sem roupa e vamos morrer vestidos, e não adianta o tamanho do seu patrimônio, porque a sua derradeira casa vai ser sempre a menorzinha, então pra que orgulho?!– E o que o faz feliz é a união entre o pessoal, a amizade –É sempre saber que vai chegar gente diferente, você está aqui na portaria e de repente está entrando um pessoal que você nunca viu, e você tem que ser cordial, tem que fazer uma sala, tratar bem, porque eles é quem colocam o pão lá dentro de casa, e isso me incentiva diariamente.
Para o trapezista aposentado e atual armador de lonas viver é... a vida é a essência, né?! A essência da remissão do seu ser, é aprendizado.