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O circense Marcos Henrique, ex-trapezista e atual armador de lonas. |
Órfão desde muito cedo, Marcos conta um
pouquinho de sua família – O único homem
da família sou eu, ai é o seguinte todas as minhas irmãs são mais velhas que
eu, e elas tiveram uma vida independente depois que meus pais faleceram (...) e
eu fiquei ali, fiquei ali né (...) eu fiquei órfão com doze anos, mas eu já
tinha absorvido essa vida circense do meu pai e da minha mãe no circo deles, no
nosso circo.
Seu pai era proprietário de um circo
americano, na época, circo americano era o circo que viajava, anos depois, ele desfez
a sociedade com seus três irmãos, que era um circo grande, e virou proprietário
de um circo pequeno, chamado de circo teatro e Marcos começou a atuar como
trapezista nesse circo - Só que o circo
era um circo teatro, primórdio, porque eles tinham um show no picadeiro, ai
levavam isso pro palco, e tinha um show que eles chamavam de show radiofônico,
que eram cantores, cantoras, danças, e no final do espetáculo, eles traziam
sempre um drama ou uma comédia pra terminar, então na verdade era um espetáculo
de três partes.
–Lâmpada
par, isso que tem ai agora, nos anos sessenta meu pai já tinha feito da
imaginação dele essas luzes coloridas de piscar estroboscópicas, e já tinha
feito e nós tínhamos isso no circo, tinha os holofotes, tudo feito de cone, com
lâmpada pintada e um disco ali fazendo o seqüencial, isso lá traz em sessenta,
e a modernidade chegou agora, mas ele já era visionário, isso que deixa a
gente, não vou dizer acima, mas com um “timezinho” a mais do que o pessoal que
vive na cidade, porque a gente tem uma vivência maior, porque você acaba
absorvendo um pouquinho de cada costume, de cada Estado, isso só vai aumentando
o seu portfólio– entre risos o
artista recorda.
O
circense conta ainda que foi a partir daí que renomeados artistas como Luiz
Gonzaga, Manzarote, Chitãozinho e Xororó, Toni e Tinoco, Ângela Maria, Léo
Canto Robertino, e Silvo Salvos ganharam o reconhecimento público, todos eles
iam no circo fazer show –Silvio Santos
vinha no circo fazer “O show da caravana do peru que fala”, ele e Manuel da
Nóbrega, e isso eu me lembro, que ele chegava no circo, entrava na barraca e pegava a tampa da panela
no fogão para se alimentar. Ele vinha com uma Kombi, Manuel da Nóbrega e umas
meninas vendendo “baú da felicidade” e fazia o show. Outro orgulho que eu tenho,
é que eu chachei com Luiz Gonzaga, chachado é uma dança do nordeste, e eu e
Luiz Gonzaga, um do lado do outro dançando. Então, essa é minha veia circense.
Marcos perdera seus pais ainda muito
jovem, e foi encaminhado para um colégio interno, estudou lá por um tempo e
quando saiu já era um rapaz –Entrei
menino , já sai rapaz, e já sai pro circo de tiro, circo de tiro é o que a gente
chama esses circos que ficam pouco tempo num lugar, que é itinerante, ai como
eu já tinha toda formação, já tinha toda tarimba de circo em si, de trapézio, ai
fui trabalhar como trapezista, porque já era o que eu sabia fazer, então é
difícil você deixar de fazer uma coisa que você está habituado a fazer.
O artista conta que foi nessa época que
surgiu a oportunidade de fazer báscula, que é uma modalidade de acrobacia, e
que fez báscula durante vinte anos, quando viajou bastante –Na verdade é um trampolim (...) é um
trampolim, sobe dois no trampolim e é uma gangorra, então fica um nessa parte
debaixo da gangorra e pula dois aqui, então da a hora, e ele sai fazendo
mortal, pirueta, double volta, tripe volta, eu no caso era o porto, subia lá,
ele saia de lá, fazia um salto mortal e vinha no meu ombro, ai eu pegava ele no
ombro, ai saia outro, fazia outro salto mortal, e ia pro ombro desse que já estava
no meu ombro, e no final tinha mais um que saia e ia pro ombro do outro.
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O ex-trapezista em um registro feito de sua acrobacia. |
Com uma rotina de treinamentos intensa,
Marcos ensaiou dois anos para então fazer o número de báscula –É puxado, tem que ter uma boa alimentação,
porque o meu número em si era triple pesado , era pesado, eu punha duzentos e
dez quilos no ombro, duzentos e dez quilos(...) tem toda uma ciência né, se você
pega um objeto e atira ele pra cima, se ele pesa dez quilos, ele não vai chegar
no chão com dez quilos,ele vai chegar com mais, e meu volante tinha sessenta e
dois quilos,ele ia mais alto do que essa lâmpada do chão, você tinha que ir lá
buscar ele, então a gente tinha uma alimentação boa, frutas, legumes, beber
pouco (...) E a gente levantava cinco horas da manhã, ia até as oito da manhã
treinando, ai dava um intervalo, a gente descansava, à tarde treinava mais um
pouco, das cinco até às seis, que era pra gente saber o que ia fazer na hora do
espetáculo, pra não confundirmos o tempo (...) é igual a menina lá dos
malabares, se ela começar a jogar quatro claves, quando ela parar o ensaio
dela, ela tem que jogar três, pra que ela não confunda o tempo, e era a mesma
coisa a gente.
Segundo Marcos, ele é recordista na báscula
–Porque eram quatro, era eu e mais três,
é por isso que eu tenho uma boa estrutura, é por isso que eu tenho uma idade e
ainda estou na ativa, porque uma vez atleta, se você parar engorda, apesar dos
meus sessenta anos,que faço esse ano agora.
Atualmente Marcos Henrique é armador de
lonas, conhecido popularmente como capataz ou prático, mas para a legislação é
chamado de técnico –Eu armo e desarmo
isso tudo, eu e uma equipe, normalmente de quinze homens, então, na verdade,
essa aposentadoria é figurativa, porque você não aposenta, você está aqui o dia
a dia no circo. Cada cone daquele ali é uma estaca, e essa estaca é fixada
manualmente com a ajuda de um martelinho, e é na mão. São dois dias para armar
e um dia e meio para desmontar (...) são trezentos e sessenta tábuas,
seiscentas cruzetas, tipo um cavaletezinho, e tudo isso é manual, não tem como mecanizar.
Com orgulho e bom humor, Marcos conta do
seu compromisso atual no circo –Você vê,
agora eu estou sozinho aqui,o outro responsável, que é na verdade o capataz,
não está, então a responsabilidade daqui é minha, você tem que estar aqui, é
vento, é limpeza, é uma costura da lona que abre, é uma estaca que o vento
força e afrouxa, você tem que ir lá refazer, então você tem essa rotina diária
aqui no circo.
O ex-trapezista diz que viveu
paralelamente a vida circense e a vida da cidade, conta que já trabalhou como
garçom e barman –Eu sempre fui só, eu
sempre fui sozinho, então não tinha problema, mesmo eu não tendo curso
superior, eu me desenrolava bem, tanto é que eu até trinta anos estava
trabalhando na indústria, trabalhei em casas finas de São Paulo (...) eu trabalhei
doze anos em um restaurante lá em São Paulo, então em uma casa que você servia
a nata da sociedade paulistana e carioca, eu tenho comigo uma lembrança, eu
servi lá nesse restaurante o Príncipe Charles, ele e a comitiva de sessenta
pessoas, servi também um príncipe da Espanha(...), são coisas que a gente
carrega né, então eu entrei como ajudante, rapidinho fui pra barman, de barman
fui a chefe de fila e ia pra métri, mas ai o circo passou e eu “opa”, larguei
tudo e voltei pro circo.
De tudo o que viveu, o armador de lonas
diz que só não conseguiu realizar um desejo na vida, que era a quinta altura na
báscula que ele queria fazer –Eu me casei,
e minha mulher não era do circo, não é do circo, ela é da cidade, então ela tem
muita resistência pra poder acompanhar o nosso dia a dia no circo, você quando
andou ali pra trás, observou, é um trenzinho pequeno, e quando não tem água no
térreo, ai tem que pegar dois baldes, ir lá no vizinho pegar água. E não é
sempre que tem essas praticidades que tem aqui, não é sempre que a gente arma
em um terreno assim, às vezes é barro, é lama, e chove, e enche d’água, e ela
não se adaptava muito bem a isso, e como ela era muito nova, maluquice né, eu
falei “então perai, eu vou deixar o circo e vamos embora”, ai sai, sai criei
meus filhos, dei educação a eles, estão lá em casa, e meu vô dizia “cara de
circo tem que morrer em circo”, eu não consigo ficar em casa, eu tenho que
sair, tenho que viajar, tenho que ir atrás.
Marcos, entre risos, diz que se não
tivesse tido essa profissão, essa vida de artista circense, ele gostaria de ser
circense. E relata um grande acontecimento que teve na sua carreira – A nossa ida pro circo Tihany, porque na
minha época não existia Circo de Soleil, então o ápice do circo aqui no Brasil,
era Tihany (...) todo mundo queria trabalhar lá, e nós tivemos uma briga no
circo onde nós trabalhávamos e achamos melhor ir embora, porque na época tinham
animais no circo, e tinha um cara que tinha um macaco, e esse macaco era muito
bravo, o cara soltava o macaco, o macaco podia pegar, e se o macaco pega né?
Ele decepa mesmo. Saímos e fomos pra frente do Circo Garcia, que hoje já acabou
também, nós estávamos parados lá, e fomos arrumar contrato na Argentina, no
Circo Roda, fomos pra Argentina, conseguimos contrato, o cara deu cinco mil
dólares pra nós, de abono, que era pra gente fazer a viagem, chegamos em São
Paulo, estamos arrumando nosso equipamento, os traillers pra viajar, isso era
uma sexta-feira à noite, ai estamos lá assim, e de repente escutamos: “O com permisso,
o com permisso”, “com permisso? Com permisso?”falei, “ deve ser os caras da
Argentina”, era o Circo Tihany, o dono do circo, “vocês vão trabalhar com a
gente”, “oh seu Tihany, nossa, como a gente gostaria imensamente de trabalhar
com o senhor, o ápice do circo, mas a gente já tem um contrato com o Roda, e já
deu bônus pra gente poder viajar”, ele falou “não, já conversei com o dono do
Roda, toma mais cinco mil pra vocês e eu já dei cinco mil pra ele lá, vocês vão
viajar com a gente”, então pra mim aquilo foi marcante, foi marcante porque até
então não tinha um báscula, e o nosso número era um número fora de série.
Existia báscula, mas não como a nossa, do porte da nossa, do pilate, sabe?
Porque a gente tinha um grau de dificuldade muito grande, haja essa quarta
altura, que é ombro a ombro, tripe salto mortal, double salto mortal, pirueta, duas
básculas e charivari, que é uma variação. Muito valorizado,muito valorizado,
então nós chegamos assim, sabe, que nem dizem os outros “por cima da carne
frita” né?! “Poxa, os caras são bons” ai nós éramos bons, nós éramos bons no
que fazíamos então esse foi, sabe, o que mais marcou, né?! Tihany é um circo
luxuoso, só de bailarinas tinham vinte e cinco, tinham doze tigres, tinham dez
leões, tinham quatro elefantes, tinham doze ursos(...). O que mais marcou foi a
nossa entrada no Circo Tihany, a trupi, a nossa trupe, nós éramos em dez no
picadeiro, era a trupe de acrobatas, eramos jovens né, e a gente fazia sucesso,
era um número bem vestido, bem coreografado, uma boa música e toda rapaziada
jovem, umas moças jovens também, então agradava, a chegar ao ponto de você
terminar, quando você ia na frente do picadeiro pra cumprimentar, o pessoal
levantava pra aplaudir em pé, então esse é o ápice, eu acho, do artista. E isso
eu encontrei lá no Tihany.
Marcos conta que os figurinos dos shows
eram desenhados e feitos por um único costureiro que fazia parte da equipe do
circo –A gente só tinha um consenso de
fazer uma roupa que se adaptasse bem ao tipo de movimento que a gente fazia,
tinha que ser colada, não podia ser a calça frouxa porque atrapalha.
O
circense diz não ter problemas com tantas viagens que faz em prol do circo, diz
ser sempre uma expectativa nova –Porque
aqui você já sabe o que é, agora, a frente a gente não sabe, é o desconhecido,
então é isso que impulsiona a gente, é saber, é o desafio!
E mais uma vez fala orgulhoso do seu
trabalho –É o record, “não, vamos lá,
vamos fazer mais rápido, vamos se empenhar um pouco mais, vamos deixar a coisa
mais interessante, mais bonita”, pra quem? Para o público, né?! cada público é
um público, e o artista e si, o reconhecimento dele, é o público, você entra
aqui, olha assim “ah está muito bonito, está muito limpinho, está bem
organizado”, isso me dá prazer, porque fui eu quem fez. Vale muito a pena, vale
mais ainda você ficar aqui e escutar os comentários na saída “Poxa que legal,
aquela menininha fez aquele negócio”, “ ai que bom, aquele cara é bom (...)”,
isso é do que a gente sobrevive, a gente também gosta de ouvir isso.
Marcos diz que o aplauso é o alimento do
artista e que sua inspiração na vida é a sua família –É o esteio, é o incentivo e o nosso apoio– E conta que o entristece
ver uma lona de circo mal cuidada, e intrigas dentro do ambiente em que
trabalha –Porque nós não somos nada aqui,
nascemos sem roupa e vamos morrer vestidos, e não adianta o tamanho do seu
patrimônio, porque a sua derradeira casa vai ser sempre a menorzinha, então pra
que orgulho?!– E o que o faz feliz é a união entre o pessoal, a amizade –É sempre saber que vai chegar gente
diferente, você está aqui na portaria e de repente está entrando um pessoal que
você nunca viu, e você tem que ser cordial, tem que fazer uma sala, tratar bem,
porque eles é quem colocam o pão lá dentro de casa, e isso me incentiva
diariamente.
Para o trapezista aposentado e atual
armador de lonas viver é... a vida é a
essência, né?! A essência da remissão do seu ser, é aprendizado.